Contra um Mundo Melhor
Luiz Felipe Pondé faz críticas afiadas a uma sociedade que não encara a vida como ela é.
Provocativo desde o título, este livro traz muitas reflexões sobre um mundo (uma sociedade) que mente sobre si mesmo. São diversos ensaios que trazem a visão cética e trágica do filósofo Luiz Felipe Pondé. Alguns são mais fáceis, mas outros são mais densos — afinal, estamos falando de um livro de filosofia.
Nesta resenha, quero discutir trechos do livro que estimularam boas reflexões e me fizeram repensar opiniões. Vamos lá!
1. Fracasso
Enfim, o que nos torna humanos são nossas desgraças. Por isso, uma sociedade que faz estilo de “utilitarista dos afetos”, movida por uma geometria do útil, como a nossa, em que quase todo mundo carrega o rosto idiota de quem vive buscando a felicidade, se desumaniza à medida que se faz estrategista eterna do sucesso existencial. Sim, eu acredito na infelicidade como matéria de vida.
Durante a vida, estaremos diante da morte, do acaso, da miséria, da violência. Uns sofrerão mais que outros com esses fatores, mas ninguém conseguirá eliminá-los por completo. Logo, ninguém consegue ser feliz o tempo todo.
Acontece que os chamados pós-modernos preferem negar esse lado trágico da vida e encontrar ilusões reconfortantes para fugir da realidade, como livros de autoajuda e o culto à autoestima.
As situações limites – a morte, o acaso, a culpa e a desconfiança que o mundo desperta – me ensinam o que é fracassar. O que farei diante desse fracasso absoluto, a visão do que não posso escapar quando represento para mim mesmo as coisas honradamente?
— Karl Jaspers
Aqui, temos a passagem de um livro do filósofo Karl Jaspers que Pondé utiliza para ilustrar o desafio que é lidar com o fracasso, o sofrimento, a infelicidade quando você tem que fazer isso honradamente.
Porque o que nos humaniza é o fracasso, homens e mulheres muito felizes não são homens e mulheres. Tenho medo de pessoas muito felizes.
2. Racionalismo
A maior impostura1 moderna não é sua utopia racionalista, mas sim sua degeneração sistemática da infelicidade.
Essa frase reúne várias ideias, então vamos por partes.
Pondé coloca essa insistência em apagar a infelicidade que vimos na seção anterior como algo ainda pior que o racionalismo2. Mas por que o racionalismo seria algo ruim?
Podemos até pensar que a razão sempre nos traz vantagens, pois nos ajuda a tirar conclusões lógicas e tomar decisões bem calculadas, sem deixar que o emocional interfira.
Mas esse é só um lado da moeda.
O acaso, o pecado, a injustiça, a miséria, a escuridão, a guerra, tudo pode produzir sentido. Ao elegermos apenas a razão feliz como máquina de sentido, ignoramos o possível mistério na experiência humana de atribuição de sentido.
O autor explica que a crise da modernidade teria como principal motivador a descoberta de que a razão, sozinha, não é capaz de dar sentido às nossas vidas. Não dá para criar sentido apenas pelo intelecto. O sentido vem de forças como a cultura, a história, as tradições e a religião.
Ele completa dizendo que há muito tempo se sabe que a razão não é autônoma e que “a razão é vítima das paixões”, como já defendia David Hume (1711 - 1776).
3. Valores, virtudes e vícios
Na filosofia antiga grega, Platão, Aristóteles, estoicos ou epicuristas sempre pensaram em termos de virtudes, e não valores. Virtude é um conceito que descreve o esforço de uma pessoa em controlar sua vontade e seus desejos em nome de alguma conduta específica: ser corajoso (combater o medo), ser generoso (combater o egoísmo), ser justo (combater a crueldade e a indiferença com o sofrimento alheio), ser metódico (combater o caos interior), ser trabalhador (combater a preguiça), ser fiel (combater a traição amorosa). Para haver virtude é necessário haver combate, sofrimento, dor. Não há virtude no vácuo da agonia.
Outra coisa que não alcançamos só com a razão é a moralidade. Você não se torna uma pessoa mais ética3 apenas decidindo racionalmente os valores pelos quais preza.
Quem se diz ético só porque afirma carregar determinados valores, não necessariamente age conforme esses mesmos valores. Já as virtudes refletem o esforço da pessoa para ter uma vida moral. Isso envolve “combate, sofrimento, dor.”
Logo, não dá para ter vida moral sendo feliz. Apesar disso, o que a sociedade moderna quer é alcançar a ética total sem sofrer.
Aliás, será que alcançar a ética total é possível? Esse é um questionamento presente em praticamente todo o livro, e cuja resposta é um convicto NÃO.
Pondé defende que quem se diz ético está querendo passar uma imagem de virtuoso. Acontece que todos temos, em menor ou maior grau, defeitos, hábitos ruins, comportamentos equivocados.
Pense por exemplo em uma situação de necessidade extrema. Você manteria suas virtudes ou seria capaz de sacrificá-las para sobreviver ou salvar pessoas queridas? Para o autor, todos têm um preço para agir contra os princípios que dizem seguir.
A propósito, nem precisamos ir tão longe. Ele acredita também que “sem hipocrisia não há civilização”. Fingimos ser melhores do que realmente somos para não expor as maldades humanas e manter o convívio possível.
Outra camada dessa análise da formação da moral de alguém são os fatores “de ordem fisiológica e visceral”. Pondé se refere a “uma fobia, um pânico, uma doença, uma vergonha, um trauma, uma violência contra a alma e o corpo” ou até mesmo “uma mania, uma obsessão, uma substância química”.
O equilíbrio entre essas fraquezas é que de fato moldaria o caráter da pessoa. Uma espécie de sistema de freios e contrapesos em que um vício não deixa outro se sobrepor demais.
Enfim, quem se apresenta como ético nega o lado falho da nossa espécie e por isso não é digno de confiança.
4. Jantares inteligentes
Mas, sobretudo, tenha em mente o seguinte: tudo é farsa na pretensa vida superbem-resolvida dessa gente superlegal envolvida em jantares inteligentes.
Talvez este seja o ponto alto do livro, em que o autor descreve em detalhes um evento dessas pessoas ditas super éticas. Quem acompanha o Pondé conhece esses personagens como “inteligentinhos”: pessoas que se acham sem defeito, que se sentem modelo moral, que julgam “todo mundo que se diferencia deles como ridículos”, têm as melhores intenções do mundo, têm certeza que são mais evoluídas (veja o vídeo abaixo).
O grande poder que eles têm é, antes de tudo, fazer seu estilo de vida desejável aos outros para assim se sentirem como alguma forma de elite, coisa que jamais reconheceriam publicamente.
5. Sentido da vida
Para Kant, a razão humana suficiente norteia nossa ação no mundo quando se indaga acerca do sentido moral do mundo. O que significa esse “suficiente” aqui (ou seu oposto, “insuficiente”)? Ser suficiente significa que o bem vence ao final porque, se o mal vencer, o mundo não tem sentido suficiente em sua forma de ser e existir. Afinal, a pergunta é: o mundo é, em sua essência, bom ou mau?
Vimos até aqui que a busca pela felicidade plena é uma ilusão, que o racionalismo tem seus problemas e que é o equilíbrio de vícios que molda a moral de uma pessoa.
Tem como ser mais trágico do que isso? Tem.
Como diria o filósofo alemão Horkheimer no século XX: somos uma raça de exilados abandonados à própria má sorte, ninguém “cuida” de nós.
O autor diz que não existe um objetivo geral de moralidade para onde a humanidade esteja se encaminhando. Usando o conceito de “suficiente” de Kant (veja o trecho destacado do início da seção), ele diz: “não acho que o mundo tenha suficiência moral última”. E completa: “o mundo está à deriva, indo para lugar nenhum.”
Aqui, a gente esbarra no conceito de niilismo4, que apesar de ter semelhanças com o pensamento de Pondé, não é uma posição filosófica com a qual ele concorde. Afinal, se nada importa, nada temos o que fazer aqui.
O que me impede de ser niilista são os meus limites fisiológicos, meus medos e meus hábitos, nada mais.
Ele chama o niilismo de um “nada de ideia” e dá três elementos que o impedem de ser niilista:
limites fisiológicos: fome, desejo, sono e outras necessidades exigem que a gente faça alguma coisa;
medos: estimulam que você tome uma atitude para se proteger de uma ameaça
hábitos: nossos costumes, rotinas e gostos mantêm a vida em movimento.
É interessante que, Luiz Felipe Pondé, declaradamente ateu, que se sente constantemente diante do abismo de um mundo sem sentido, demonstra sensibilidade pelo mistério das religiões mesmo com seu ponto de vista cético e trágico.
Em muitos ensaios fica evidente sua familiaridade com a Bíblia. Sem falar no seu nítido respeito à sabedoria presente nela.
A ciência é ambígua em termos morais. Mas a obsessão pela ciência nunca é ambígua nesse sentido: se quero criar uma vida “científica”, já sou um monstro moral. A busca da perfeição pode ser uma das formas do abismo humano.
Voltemos à questão do sentido da vida. Por que não considerar o progresso como a engrenagem que move a humanidade?
É evidente que o avanço científico é importante para diminuir o sofrimento e melhorar a qualidade de vida das pessoas, mas a crítica de Pondé está numa espécie de fé na ciência.
A ciência não vai te dar uma vida mais justa, feliz e completamente livre de sofrimento. Ela pode até oferecer uma série de vantagens, mas não uma vida perfeita.
Nossa imensa ignorância perante a imensidão da vida e do universo, perante a impenetrabilidade das razões de nosso nascimento e de nossa morte, perante nosso inexorável isolamento nesta vastidão dos espaços infinitos de escuridão que nos assusta, como diria Pascal, nos impõe a humildade como forma última de estar no mundo. Sem ela, não há conhecimento possível.
6. Liberdade
(…) ser indivíduo é ser órfão de qualquer referência de tradição como fundamento de seus atos e suas escolhas. É ser Hamlet. É ser Jó. É escolher contra um cenário sem referências, numa solidão cósmica absoluta. Mas a publicidade democrática que afirma que todos somos indivíduos pensa que ser indivíduo é ser um “órfão feliz” da tradição. Não existem órfãos felizes.
Apesar de eu ter deixado para falar de liberdade no final, esse é um tema que muito me interessa. E uma das formas que Pondé encontrou para falar sobre ele foi usando o conceito de indivíduo.
O indivíduo convive constantemente com a dúvida porque ele é inteiramente responsável pelas suas decisões. Suas escolhas não são baseadas em tradições ou outras referências, por isso ele vive nessa falta de certeza, em meio à insegurança e à solidão.
Muitos desejam a liberdade de fazer o que quiser, mas será que estão prontos para suportar o peso que é ser indivíduo?
É, meus amigos. Não costumo pegar livros de filosofia, mas devo dizer que esse valeu a pena.
Trouxe aqui os temas que mais me chamaram a atenção, porém quem for ler também vai encontrar questões como relacionamento, problemas da universidade e teologia.
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Quando li “impostura”, achei que fosse no sentido de uma postura ruim. Na verdade, “impostura” seria um ato de impostor, mentira, calúnia ou hipocrisia.
Racionalismo é, resumidamente, uma corrente filosófica que afirma que a razão é a principal fonte de obtenção de conhecimento.
Luiz Felipe Pondé não faz distinção entre ética e moral no livro (vide o ensaio “O Gosto da Culpa”). Faço o mesmo nesta resenha.
Niilismo é, em termos gerais, uma posição filosófica que não vê significado na existência do mundo, que não enxerga um propósito moral na humanidade